
(Texto de Renato Teixeira)
Pra mim não é o cão e muito menos o Whisky, como
queria o poeta Vinicius de Moraes; o melhor amigo do homem, a meu ver é o...
armário!
Não o armário de roupas, que também nos é quase indispensável
e que, bem arrumado levanta significativamente nosso astral; muito menos o
armário da piada popular; muito menos ainda aquele de onde as pessoas costumam
sair depois de autoconclusões existenciais; estou falando do armário com dois
metros de altura, dois gavetões na parte de baixo, três prateleiras internas e
duas portas que se abrem uma para cada lado.
Na casa de meu avô na rua Conceição 111, em
Ubatuba, havia um desses no fundo do corredor de entrada. Era um armário com
chave carregada por meu avô no bolso do paletó, guardando para si o direito de
acesso ao interior daquele móvel misterioso pintado de verde, em outros tempos
pintado branco, sempre mudando de cor por décadas afora; minha curiosidade de
menino estava sempre tentando um acesso visual, mínimo que fosse, para saber o
que havia ali de tão valioso; quais segredos seriam aqueles que inspiravam
tanto zelo?
Quando meu avô Jango partiu dessa pra melhor eu já
era adulto e já havia começado minha carreira musical. Nos últimos tempos, eu
desviava o olhar quando ele se postava diante do seu relicário, em respeito aos
seus costumes.
Foi um momento significativo em minha vida quando
abrimos o armário do meu avô, alguns dias depois que ele morreu. Entre as
coisas miúdas que compunham seus pertences, havia recibos, perfumarias, uma
triste foto de seu filho Cícero, que morreu menino, aparelhos de barba para
reposição, água Velva, ferramentas pequenas, etc. e uma foto minha tocando
violão, pregada na madeira do fundo.
O velho armário ficou com meu irmão e faz tempo que
não sei em que casa ele presta seus serviços, se é que não desmilinguiu pelo
caminho.
Tempos atrás, passando numa loja de móveis, vi um
armário do tamanho daquele do meu avô e, não sei por que cargas d’água, resolvi
comprar. Pensei cá comigo; se seu Jango tinha um e aquilo era tão significativo
para o seu dia a dia, por que não experimentar também uma coisa dessas!?
Amigos; que grata surpresa! Minha vida mudou
completamente pois minhas pequenas coisas de existir não estão mais espalhadas
pela casa; estão todas dentro do meu armário que fica ao lado da minha cama e
que, além de me colocar entre os homens da terra que passaram pela deliciosa
experiência de possuir um equipamento de tamanha utilidade, me serve também
como uma espécie de psicanalista implacável e justo que, quando minha cabeça
fica meio atrapalhada com as atrapalhadas da vida, se deixa ficar desorganizado
e feio, clamando por uma ordem que, quando vem, tem o dom de colocar tudo no
lugar.
Entre o meu armário e o armário do meu avô existe
agora uma tênue linha do tempo que me une deliciosamente àquele senhor
ubatubano, elegante e discreto.
A diferença é que no meu não tem chave; talvez
porque eu não use paletó e os bolsos das calças de hoje em dia já não são mais
como dos antigamente, onde as chaves soavam soltas como os cincerros no pescoço
das cabras.
E também porque tenho netos e sei que eles
gostariam de ter acesso aos meus segredos, que não passam de particularidades
inocentes do meu dia a dia.
Quem sabe assim eles não tenham que esperar tanto
quanto eu esperei para descobrir que um homem sem um armário só seu... não é
nada!