sexta-feira, 3 de julho de 2015

Cães



E um cão, que estava deitado, erguendo a cabeça,
eriçou as orelhas: era Argos que o paciente Ulisses havia
criado antes de ir para a sagrada Ílion (...)
Abandonado na ausência de seu senhor, rolava diante do portal
sobre os estrumes das mulas e dos bois.
Ali estava deitado Argos, comido das carraças.
Vendo aproximar-se Ulisses, agitou a cauda e baixou a cabeça,
Faltaram-lhe forças pra chegar até onde estava seu senhor.
Este, voltando a cabeça, chorou...
Od. XVII, 291-304.


            Estava difícil abrir o portão e entrar. Duque, ansioso, choramingava – ávido que estava pelo pão, e talvez por estar só. Como sempre, pulou para pegar o pão ainda no ar.
            Entrei, meio insegura, com receio de ter sido esquecida e ele me estranhar.
            Chamei-o baixinho. “Cadê meu cachorro?” Choraminguei como ele, chamando-o.
            Com o pão na boca, Duque olhou-me por alguns longos e intermináveis instantes, um olhar cinza-saudoso de cortar o coração. Largou o alimento ali mesmo e veio ao meu encontro. Cheirou-me, esfregou-se em meus pés e minhas pernas, olhou-me e, humildemente abaixou a cabeça para receber o costumeiro carinho que eu lhe dava.
            Conversei carinhosamente com ele enquanto afagava-lhe os pelos. Percebi que a cada vez que eu retirava a mão, ele me olhava de novo com aquele olhar envelhecido e reclinava a cabeça. Sentia falta dos carinhos. Alimentado da saudade, correu feliz para o pão.
            Aproveitei sua distração para sair, ir embora.
            Lembro-me da história de Argos – o cão de Ulisses contada pelo meu primo Andrey, lá longe em minha infância. Nunca me esqueci da frase final: “Só tu, Argos, só tu me reconheceste!” Arrepia-me a frase até hoje.
            Agora me vejo aqui. Chorando a saudade de sua infância. Meu cachorro envelheceu. Vi isso em seus olhos. Me vi em seus olhos.


Sandra Medina Costa

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