sábado, 15 de outubro de 2011

EDUCAÇÃO

Texto escrito por Rubem Alves e publicado pela Folha de São Paulo

Caro senhor ministro da Educação,

Acho, Paulo Renato, que você ocupa a posição política mais importante do Brasil — mais que a da Presidência. Sobre o presidente paira uma maldição terrível, descrita por Maquiavel em "O Príncipe": a maldição do poder.
O poder é um demônio que não dá descanso, não havendo exorcismo que o resolva. Totalitário, ele se apossa do corpo e da alma; exige lealdade total e não deixa sobrar tempo para mais nada. Tal qual são Jorge, o presidente passa os dias e as noites lutando com um dragão que ressuscita a cada manhã, não lhe sobrando tempo para dedicar-se às coisas que são essenciais.
O essencial na vida de um país é a educação. Se não me falha a memória, você estudou em colégio de padres e vai entender o que digo. No Evangelho de João, está escrito que "no princípio era o Verbo". "Princípio", em grego, é palavra filosófica, que não significa só começo no tempo, mas fundamento — aquilo que é a base do que existe.
Acho que o autor sagrado não ficaria bravo comigo se eu fizesse uma tradução livre do seu texto para os tempos modernos: "No princípio é a educação". A educação, em essência, é precisamente isso: o exercício do Verbo.
Pensa-se que a tarefa de um político é administrar o país: pôr a casa em ordem, construir coisas novas, consertar as velhas; cuidar de finanças, saúde, segurança, justiça e meios de comunicação; administrar os meios de escolarização existentes, coisa sob a responsabilidade do Ministério da Educação.
Discordo. Há uma diferença qualitativa entre o que fazem os ministérios administrativos e o que o Ministério da Educação deve fazer. Os primeiros cuidam do "hardware" do país; lidam com a "musculatura" nacional. O segundo cuida do "software", da "inteligência" nacional. Seu objetivo é fazer o povo pensar. Porque um país — ao contrário do que me ensinaram na escola — não se faz com as coisas físicas que se encontram no seu território, mas com os pensamentos do seu povo.
Explico: o que está no início, o jardim ou o jardineiro? É o segundo. Havendo um jardineiro, cedo ou tarde, um jardim aparecerá. Mas um jardim sem jardineiro, cedo ou tarde, desaparecerá. O que é um jardineiro? Uma pessoa cujo pensamento está cheio de jardins. O que faz um jardim são os pensamentos do jardineiro. O que faz um povo são os pensamentos dos que o compõem.
Os grandes políticos não foram administradores de coisas. Foram criadores de povos. E o que é um povo? Santo Agostinho, 15 séculos atrás, disse que um povo é "um conjunto de seres racionais unidos por um mesmo objeto de amor". Ou seja, pessoas que partilham de um mesmo sonho. Émile Durkheim percebeu igual. Os povos, disse, não são feitos só "da massa de indivíduos que os compõem, dos territórios que ocupam, das coisas que usam, dos movimentos que executam. Eles são feitos, sobretudo, com as ideias que os indivíduos têm de si mesmos".
Foi precisamente isso que Chico Buarque disse em "A Banda". Cada um estava concentrado no seu sonhinho: a namorada, o faroleiro, o homem rico, a moça feia, o homem velho... Cada um na sua, não havia povo; tal como nós, do Brasil, país que não tem povo porque não há sonhos belos a ser sonhados. Mas aí passou uma banda. E o que ela tocava era tão bonito que os sonhos de cada um logo ficaram pequenos e foram esquecidos. Esquecidos os sonhinhos individuais, formou-se a procissão dos que seguiam o sonhão que a banda tocava. Um povo nasceu. "A Banda" contém uma teoria política sobre o nascimento de um povo.
Faz uns meses, publiquei nesta seção uma carta inútil ao sr. Roberto Marinho. Usei de uma metáfora: o anúncio do Marlboro que aparece na TV. É lindo, com riachos cristalinos, raios de sol, bosques de pinheiros, cavalos selvagens. Eu, que não fumo, vendo o comercial, fico encantado. A beleza seduz, me faz sonhar. Quero estar lá.
Após o curto feitiço, aparece a advertência do Ministério da Saúde: "Fumo produz câncer". É conhecimento científico. Frase verdadeira. E morta. Não conheço ninguém que tenha deixado de fumar por causa das verdades que o conhecimento científico enuncia. Conheço muitas que vieram a fumar por causa da sedução da beleza.
Nossas escolas têm se dedicado a ensinar o conhecimento científico, com todos os esforços para que isso aconteça de forma competente. Isso é muito bom. A ciência é indispensável para que os sonhos se realizem. Sem ela, não se pode plantar nem cuidar do jardim.
Mas há algo que a ciência não pode fazer. Ela não é capaz de fazer os homens desejarem plantar jardins. Ela não tem o poder para fazer sonhar. Não tem, portanto, o poder para criar um povo. Porque o desejo não é engravidado pela verdade. A verdade não tem o poder de gerar sonhos. É a beleza que engravida o desejo. São os sonhos de beleza que têm o poder de transformar indivíduos isolados num povo.
As escolas se dedicam a ensinar os saberes científicos, visto que sua ideologia científica lhes proíbe lidar com os sonhos (coisa romântica!). Assombra-me a incapacidade das escolas para criar sonhos. Enquanto isso, os meios de comunicação (principalmente a TV), que conhecem melhor os caminhos dos seres humanos, vão seduzindo as pessoas com seus sonhos pequenos, frequentemente grotescos. Assombra-me a capacidade desses meios para criar sonhos. Mas de sonhos pequenos e grotescos só pode surgir um povo de ideias pequenas e grotescas.
Se o Ministério da Educação for só um gerenciador dos meios escolares, será difícil ter esperança. Pensei, então, que o ministério talvez tivesse poder e imaginação para integrar os meios de comunicação num projeto nacional de educação: semear os sonhos de beleza que se encontram no nascedouro de um povo. Assim, realizaria a sua vocação política de criar um povo. Por isso, Paulo Renato, considero sua posição de ministro da Educação a mais importante na vida política do Brasil. Da educação pode nascer um povo.

Rubem Alves, 64, educador, escritor e psicanalista, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Fonte: Folha de São Paulo, 27 de maio de 1998.

EDUCADOR


"Se não morre aquele que escreve um livro ou planta uma árvore, com mais razão não morre o educador que semeações escreve na alma."
Bertold Brecht

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