Preciosidades de Pessoa
Pasquale Cipro Neto
O texto de Pessoa é mais uma
demonstração de que é possível inverter o velho ditado ("A arte imita a
vida")
Em vestibular (2007), a Unesp incluiu a
profunda e intemporal "Crônica da Vida que Passa" (de Fernando
Pessoa), que assim começa:
"Às vezes, quando penso nos homens
célebres, sinto por eles toda a tristeza da celebridade. A celebridade é um
plebeísmo.
Por isso deve ferir uma alma delicada.
É um plebeísmo porque estar em evidência, ser olhado por todos inflige a uma
criatura delicada uma sensação de parentesco exterior com as criaturas que
armam escândalo nas ruas, que gesticulam e falam alto nas praças. O homem que
se torna célebre fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes da sua
vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas
mínimas ações - ridiculamente humanas às vezes - que ele quereria invisíveis,
côa-as a lente da celebridade para espetaculosas pequenezes, com cuja evidência
a sua alma se estraga ou se enfastia. É preciso ser muito grosseiro para se
poder ser célebre à vontade".
Pessoa escreveu isso num tempo em que
não havia a grande "média", como dizem os portugueses (nós dizemos
"mídia", forma baseada na pronúncia inglesa - é bom lembrar que a
palavra vem do latim). Quando fala das "criaturas que armam escândalo nas
ruas, que gesticulam e falam alto nas praças", Pessoa parece antever o que
hoje ocorre com os pobres de espírito que falam alto ao celular em qualquer
canto ("tornam-se de vidro as paredes de sua vida doméstica", diz o
grande Pessoa). Imagine se ele vivesse sob os zurros dos "big
brothers" da vida...
O texto de Pessoa é mais uma
demonstração de que é possível inverter o ditado ("A arte imita a
vida"). Às vezes é a vida que imita a arte.
Posto isso, assentemo-nos ao rés do chão,
ou seja, falemos de alguns dos interessantes tópicos linguísticos presentes no
excerto de Pessoa. Um deles diz respeito à palavra "pequenezes"
("espetaculosas pequenezes"). "Pequenezes" é o plural de...
De "pequenez" ("qualidade de pequeno"). Se nos valermos do
próprio Pessoa ("Tudo vale a pena se a alma não é pequena"),
poderemos, numa livre adaptação, dizer que tudo vale a pena, quando a pequenez
da alma não prevalece. É claro que não se pode confundir "pequenez"
com "pequinês", que se refere à cidade de Pequim (os cães pequineses
são pequineses porque vêm de Pequim).
Pois o plural de "pequenez"
remete-nos ao de "gravidez", que os leitores sempre perguntam. O
plural de "gravidez" é como o de qualquer palavra terminada em
"z", como "luz", "raiz", "juiz",
"meretriz", "giz" etc., isto é, é feito com o acréscimo de
"es" (luzes, raízes, juízes, meretrizes, gizes). Moral da história:
"Suas três gravidezes foram bem difíceis".
Outra passagem que merece destaque é
"quereria" ("que ele quereria invisíveis"). Trata-se da
terceira do singular do futuro do pretérito de "querer". Na linguagem
oral, essa forma apresenta baixa incidência (costuma ser substituída por
"queria", do pretérito imperfeito - esse processo é mais do que
legítimo nas variedades não formais da língua).
Na escrita formal e na literária, o uso
de "quereria" não é raro ("Assim eu quereria o meu último poema
/ Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais...",
escreveu Bandeira). É isso.