Rubem Alves
O galinheiro estava em polvorosa. Cocorocós
de galos, cacarejos de galinhas, tofracos de angolinhas, pios de pintinhos -
tudo se misturava num barulho infernal. Todos haviam sido convocados a uma
assembléia pelo Chantecler, o galo prefeito do galinheiro, para tratar de um
assunto de grande importância: o fato de vários ovos chocados pela Cocota terem
sido comidos por um ladrão, num breve momento em que ela abandonara o ninho
para comer milho e beber água.
As pegadas eram inconfundíveis: o ladrão era
uma raposa. Raposas são animais muito perigosos. Comem não somente ovos como
também pintinhos e mesmo galinhas mais crescidas. Com um sonoro cocoricocó,
Chantecler pediu silêncio, expôs o problema e franqueou a palavra.
Encarapitado no galho de uma goiabeira, um
galinho garnizé cantou estridente. Era o Mundico. Ele adorava discursar.
"Companheiros", ele começou, "peço a atenção de vocês para as
ponderações que vou fazer acerca da crise conjuntural em que nos encontramos.
Charles Darwin foi o primeiro a mostrar que a história dos bichos é marcada
pela luta em que os mais fortes devoram os mais fracos. Os leões comem os
veados, os lobos comem os cordeiros, os gaviões comem as pombas, as raposas
comem as galinhas. Os mais aptos sobrevivem, os outros morrem".
"Assim, a crise conjuntural em que nos
encontramos nada mais é que uma manifestação da realidade estrutural que rege a
história dos bichos. E o que é que faz com que as raposas sejam mais aptas do
que nós? As raposas são mais aptas e nos devoram porque elas detêm o monopólio
de um saber que nós não temos. Somente nos libertaremos do jugo das raposas
quando nos apropriarmos dos saberes que elas têm."
"Como se transmitem os saberes? Por meio
da educação. Sugiro então que empreendamos uma reforma em nossos currículos e
programas. Se, até hoje, nossos currículos e programas ensinavam aos nossos
filhos saberes galináceos, de hoje em diante eles ensinarão saberes de
raposa."
"Primeiro, teremos de educar os nossos
olhos para que eles passem a ver como vêem as raposas. Onde é que as raposas
têm os seus olhos? Na frente do focinho. E nós? Onde estão os nossos olhos? Do
lado. Educaremos os nossos olhos para que eles olhem para frente, como as
raposas."
"Segundo: teremos de reeducar o nosso
andar. Raposas andam com quatro patas. Por isso valem o dobro que nós, que só
temos duas. Como transformar duas patas em quatro? Nós, galinhas e galos,
bípedes, passaremos a andar aos pares, um na frente, outro atrás, o de trás
segurando o traseiro do que vai à frente, e assim seremos quadrúpedes."
"Terceiro: as raposas têm pelos,
enquanto nós temos penas. Teremos de nos livrar de nossas penas para que no seu
lugar cresçam pêlos. E os nossos rabos, ridículos uropígios, estimulados pelos
pêlos, se alongarão para trás e se transformarão em rabos de raposa."
"Quarto: as raposas têm focinhos e nós
temos bicos. Mas o que é um focinho? Focinho é uma coisa sem bico. Ora, bastará
que extraiamos os nossos bicos para termos focinhos, como as raposas. Assim,
pela educação, nos apropriaremos dos saberes das raposas, espécie que por
tantos milênios nos tem dominado. Será, então, o advento da liberdade!"
Mundico se calou. Todos estavam
"biquiabertos" com a sua eloquência. E todos concordaram com o seu
projeto educacional. Galos e galinhas arrancaram umas às outras as suas penas
e, peladas, aguardavam o crescimento dos pêlos. Por meio de exercícios
apropriados, movimentavam seus olhos para que eles aprendessem a olhar para a
frente. Desbicaram-se, lixando seus bicos em pedras ásperas. E andavam, como
Mundico dissera, aos pares, um na frente e outro agarrado atrás...
Mas parece que o currículo de raposa não deu
resultado. A raposa continuou a comer ovos dos ninhos e chegou mesmo a devorar
um pintinho distraído. Acharam que ela tivesse também devorado o Sesfredo, um
galo velho de pescoço pelado, vermelho, e que cantava com sotaque caipira.
Convocou-se outra assembleia. Toda a
população do galinheiro compareceu. Para surpresa de todos, até mesmo o
Sesfredo, que tomou lugar num galho de uma árvore muito alta, onde nenhum galo
ou galinha jamais fora. "A gente pensou que você tinha sido devorado pela
raposa", cantou o Godofredo, forte galo índio. "Que nada", disse
Sesfredo. "É que me internei no spa do Urubuzão para fazer uma reciclagem
de vôo. Urubu é ave como nós. Mas raposa não come urubu. Raposa não come urubu
porque urubu sabe voar. Raposa come galos e galinhas porque desaprendemos o uso
de nossas asas..."
Nesse momento uma angolinha que ficara de
sentinela deu o alarme: "Aí vem a raposa, aí vem a raposa, aí vem a
raposa...". Foi uma correria, cada um correndo para um lado. Mas ninguém
sabia voar. A raposa, valendo-se da confusão, abocanhou uma galinha garnizé, já
depenada e desbicada...
Todo mundo entrou em pânico. Menos o Sesfredo.
Lá de cima, ele abriu as asas e voou alto, muito alto, até parecia um urubu...
Assim é: ave que sabe voar, raposa não consegue pegar.
Alguns há que justificam os currículos de
nossas escolas dizendo que é preciso que as classes dominadas se apropriem dos
saberes das classes dominantes. Há muitos Mundicos por aí...
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