quarta-feira, 3 de maio de 2023

O melhor amigo do homem

 


(Texto de Renato Teixeira)
 
Pra mim não é o cão e muito menos o Whisky, como queria o poeta Vinicius de Moraes; o melhor amigo do homem, a meu ver é o... armário!
Não o armário de roupas, que também nos é quase indispensável e que, bem arrumado levanta significativamente nosso astral; muito menos o armário da piada popular; muito menos ainda aquele de onde as pessoas costumam sair depois de autoconclusões existenciais; estou falando do armário com dois metros de altura, dois gavetões na parte de baixo, três prateleiras internas e duas portas que se abrem uma para cada lado.
Na casa de meu avô na rua Conceição 111, em Ubatuba, havia um desses no fundo do corredor de entrada. Era um armário com chave carregada por meu avô no bolso do paletó, guardando para si o direito de acesso ao interior daquele móvel misterioso pintado de verde, em outros tempos pintado branco, sempre mudando de cor por décadas afora; minha curiosidade de menino estava sempre tentando um acesso visual, mínimo que fosse, para saber o que havia ali de tão valioso; quais segredos seriam aqueles que inspiravam tanto zelo?
Quando meu avô Jango partiu dessa pra melhor eu já era adulto e já havia começado minha carreira musical. Nos últimos tempos, eu desviava o olhar quando ele se postava diante do seu relicário, em respeito aos seus costumes.
Foi um momento significativo em minha vida quando abrimos o armário do meu avô, alguns dias depois que ele morreu. Entre as coisas miúdas que compunham seus pertences, havia recibos, perfumarias, uma triste foto de seu filho Cícero, que morreu menino, aparelhos de barba para reposição, água Velva, ferramentas pequenas, etc. e uma foto minha tocando violão, pregada na madeira do fundo.
O velho armário ficou com meu irmão e faz tempo que não sei em que casa ele presta seus serviços, se é que não desmilinguiu pelo caminho.
Tempos atrás, passando numa loja de móveis, vi um armário do tamanho daquele do meu avô e, não sei por que cargas d’água, resolvi comprar. Pensei cá comigo; se seu Jango tinha um e aquilo era tão significativo para o seu dia a dia, por que não experimentar também uma coisa dessas!?
Amigos; que grata surpresa! Minha vida mudou completamente pois minhas pequenas coisas de existir não estão mais espalhadas pela casa; estão todas dentro do meu armário que fica ao lado da minha cama e que, além de me colocar entre os homens da terra que passaram pela deliciosa experiência de possuir um equipamento de tamanha utilidade, me serve também como uma espécie de psicanalista implacável e justo que, quando minha cabeça fica meio atrapalhada com as atrapalhadas da vida, se deixa ficar desorganizado e feio, clamando por uma ordem que, quando vem, tem o dom de colocar tudo no lugar.
Entre o meu armário e o armário do meu avô existe agora uma tênue linha do tempo que me une deliciosamente àquele senhor ubatubano, elegante e discreto.
A diferença é que no meu não tem chave; talvez porque eu não use paletó e os bolsos das calças de hoje em dia já não são mais como dos antigamente, onde as chaves soavam soltas como os cincerros no pescoço das cabras.
E também porque tenho netos e sei que eles gostariam de ter acesso aos meus segredos, que não passam de particularidades inocentes do meu dia a dia.
Quem sabe assim eles não tenham que esperar tanto quanto eu esperei para descobrir que um homem sem um armário só seu... não é nada!

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