Criar!
A criatividade é manifestação de um impulso que mora na alma humana. É isso que
nos distingue dos animais. Os animais estão felizes no mundo, do jeito como ele
é. Há milhares de anos a abelhas fazem colmeias do mesmo jeito, os pintassilgos
cantam o mesmo canto, as aranhas fazem teias idênticas, os caramujos produzem
as mesmas conchas espiraladas. Não criam nada de novo. Não precisam. Estão
felizes com o que são. O que não acontece conosco. Somos essencialmente
insatisfeitos e curiosos. Albert Camus disse que somos os únicos animais que se
recusam a ser o que são. A gente quer mudar tudo. Inventamos jardins,
inventamos casas, inventamos culinária, inventamos música, inventamos
brinquedos, inventamos ferramentas e máquinas. Michelangelo inventou a "Pietà",
Rodin inventou o "Beijo", Beethoven inventou a "9ª
Sinfonia".
Como
é que a criatividade acontece? É preciso, em primeiro lugar, que haja algo que
nos incomoda. Por que é que a ostra faz pérola? Porque, por acidente, um grão
de areia entrou dentro de sua carne mole. O grão de areia incomoda. Aí, para
acabar com o sofrimento, ela faz uma bolinha bem lisa em torno do grão de areia
áspero. Desta forma ela deixa de sofrer. Aprenda isso: "Ostra feliz não
faz pérola". Isso vale para nós. As pessoas felizes nunca criaram nada.
Elas não precisam criar. Elas simplesmente gozam a sua felicidade. Bem disse
Octávio Paz: "Coisas e palavras sangram pela mesma ferida". Toda
criatividade é um sangramento.
Como
é que a criatividade se inicia? Já disse: inicia-se com um sofrimento. O
sofrimento nos faz pensar. Pensamento não é uma coisa. O pensamento se faz com
algo que não existe: ideias. Ideias são entidades espirituais. O espiritual é
um espaço dentro do corpo onde coisas que não existem, existem. A Pietà, antes
de existir como escultura, existiu como pensamento, espírito, dentro do corpo
do Michelangelo. O "Beijo", antes de existir como objeto de arte,
existiu como espírito, dentro do corpo de Rodin. A 9ª Sinfonia, antes de
existir como peça musical que se pode ouvir, existiu como espírito, dentro da
cabeça de Beethoven.
O
espírito não se conforma em ser sempre espírito. Que mulher ficaria feliz com a
ideia de um filho? Ela não quer a ideia de um filho, coisa linda. É linda - mas
enquanto espírito, só dá infelicidade. A mulher quer que a ideia de um filho -
sentida por ela como desejo e nostalgia - se transforme num filho de verdade.
Por isso ela quer ficar grávida. Quando o filho nasce, aí ela experimenta a
felicidade.
Uma
ideia que deseja se transformar em coisa tem o nome de "sonho". O
sonho deseja transformar-se em matéria. A "espiritualidade" do
espírito está precisamente nisso: o desejo e o trabalho para fazer com que
aquilo que existe apenas dentro da gente (e que, portanto, só pode ser conhecido
pela gente), se transforme numa coisa, que pode então ser gozada por muitos. A
espiritualidade busca comunhão. Hegel dava a esses objetos, produtos da
criatividade, o nome de "objetivações do espírito". O caminho do
espírito é esse: da espiritualidade pura e individual, para a coisa, objeto que
existe no mundo, para deleite e uso de muitos. Os objetos, assim, são o
espírito tornado sensível, audível, visível, usável, gozável. Uma canção só
existe quando cantada. Um quadro só existe quando visto. Uma comida só existe
quando comida. Um brinquedo só existe quando brincado. Um filho só existe
quando parido. O espírito tem nostalgia pela matéria.
Ele
deseja fazer amor com a matéria. E quando espírito e matéria fazem amor, nasce
a beleza. Deus não se contentou em sonhar o Paraíso. Se o sonho do Paraíso lhe
tivesse dado felicidade ele teria continuado apenas sonhando o Paraíso. Deus
não se contentou em sonhar o homem. Se o sonho do homem lhe tivesse dado
felicidade ele teria continuado sonhando o homem. Mas ele (ou ela) só se deu por
completo quando se transformou em homem: "... e o Verbo (sonho) se fez
carne (corpo)". O espírito quer descer, mergulhar...
Tão
diferente daqueles que pensam que espiritualidade é o espírito se despegando da
matéria, o corpo morrendo para ser só espírito, sem carne e sem sentidos, como
se o material fosse doença, coisa inferior. Beethoven por acaso acharia que os
instrumentos da orquestra são coisa inferior? Mas como? Sem eles a 9ª sinfonia
nunca seria ouvida! Nesse caso ele ficaria feliz com a sua surdez, porque então
a 9ª sinfonia permaneceria para sempre espírito puro!
Rubem Alves
[Imagem Google]
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