sábado, 6 de junho de 2009

Cicatrizes



Há um tempo atrás, fiz uma trilha em Guaramiranga com um grupo de amigos. Estávamos à procura de um lugar apropriado para um rappel. Inesperadamente, uma garotinha de aproximadamente oito anos se emparelha a mim e pergunta:
“quantas cicatrizes você tem?”
Antes que eu pudesse responder, ela diz: “eu tenho duas...” mostrando com orgulho duas marquinhas que possuía na perna. Depois saiu correndo alegre e satisfeita pela trilha.
A pergunta me atravessou feito uma flecha. De repente, começo a ouvir o meu coração batendo forte e apressado. Um suor frio (que mais parece vir da minha alma do que do meu corpo em movimento), molha toda a minha camisa. O que era pra ser apenas uma trilha no meio da mata e uma descida de rappel, se transforma numa trilha tortuosa pelos caminhos do meu coração e uma descida sem cordas que penetra nas diversas camadas do meu ser.
Num instante, já não estou mais consciente de nada que acontece externamente: cores, pessoas, cheiros, ruídos e etc. Senti que fui impelida bruscamente numa viagem no tempo em que revisitei pessoas, histórias, amigos e situações que deixaram marcas.
Uma inocente pergunta me provocara uma espécie de expansão na consciência e me deixara frente a frente comigo mesma, sem nenhum tipo de proteção. Nesse momento, não me sinto triste, mas me sinto só; não sinto dor, mas sinto frio; não sinto pena de mim, mas choro...
Procurei um lugar isolado pra observar aquela avalanche de sensações e encontrei uma ponta de pedra, à beira de um penhasco, de onde se podia ver um bonito lago.
Lá, comecei a olhar para todas as cicatrizes que trazia na alma e no coração...
Fiquei pensando em quantos ferimentos tinham sido causados por minha responsabilidade direta, por escolhas desacertadas e buscas desencontradas; quantos eu havia permitido que os outros fizessem por ser tão crédula a respeito do amor, da bondade e da amizade; e quantos aconteceram por fatalidades ou imprevistos e que, nem por isso, foram menos dolorosos.
Parece que alguns ferimentos são tão letais que a gente tem a impressão de que se morre diversas vezes na mesma vida. E quando a gente ressuscita já vem com aquela cicatriz e um medo enorme de levar o próximo golpe... É incrível a nossa capacidade de suportar dores tão doídas, ferimentos tão profundos e, ainda assim, seguir em frente acreditando na vida mais do que na morte.
Enquanto meus amigos já desciam de rappel no lago, um desconhecido que me vê lá de baixo, pergunta: “vai desistir”?
A pergunta me traz de volta ao presente e eu faço um breve aceno com a mão.
Sem saber quanto tempo se passara, penso comigo mesma: desistir? Não, hoje não! Hoje tenho um paredão de pedras para enfrentar e ele não é muito diferente de algumas pessoas duras e situações ásperas que eu tenho que lidar nesse mundo cheio de gente raivosa e ressentida.
Compreender a natureza tal como ela é, sem julgamentos, e lidar com as situações adversas que ela apresenta, me ajuda a ser mais flexível com as fraquezas naturais do ser humano e com as minhas próprias, e também me dá a certeza absoluta que, apesar de tudo, a vida se renova não importa quantos ferimentos ela venha a sofrer.
No rappel, sei que alguns pedaços podem desabar e que eu posso me machucar, mas acredito que viver é isso: correr riscos, de vida e de morte! Mas, além disso, sei também que no meio da descida íngreme sempre é possível achar uma flor de beleza rara encravada na pedra. E aí, então, a gente esquece os arranhões, as feridas e as cicatrizes, e ressuscita de novo a fé na vida e nas pessoas e volta a amar mais uma vez, sem se importar com as conseqüências.

[imagem da web]

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