[...] Na praça, de frente ao
hotel, instala-se uma feira de artesanato. [...] Uma feira como tantas outras. Depois
de olhar tudo, perguntei alguns preços, sento-me num banco da praça para
respirar aquele momento de tranquilidade e prazer.
Diante de mim um rapaz abre
no chão um pedaço de feltro e monta ali a sua 'banca'. Anéis, colares,
pulseiras vão sendo expostos. Minha curiosidade se aguça quando o 'hippie'
começa a fazer com o que se parece um colar de miçangas. Ele pega um fio de
nylon, desses de pesca, bem grosso e um saquinho de contas coloridas. Apanha a
primeira conta, amarela. Não sei por que, sinto uma certa contrariedade. Achei
que deveria começar pelo azul. Mas ele, absorto de tudo, passa pela conta e,
num gesto rápido e automático, pega outra, verde. Há uma lógica, penso, o
hippie é patriota. A continha verde escorrega pelo fio e vai se juntar à
amarela. O artista estende a mão e pega outras contas no saquinho, sem sequer
olhar. Vem uma preta, uma vermelha e outra amarela. Enfia as três que correm
ligeiras pelo fio até se encontrarem com as outras. Na sequência contas azuis,
verdes, pretas, amarelas entram pelo fio, ou o fio entra por elas e vão
formando o que me parece ser agora um caos policromático sem nenhuma ordem ou
critério. Quase me levanto do banco e interfiro quando o rapaz pega uma conta
roxa. Mas para meu alívio, o fio não entra. É grosso demais. É grosso e o
buraco da conta é muito estreito. Pacientemente, o hippie apanha um minúsculo
prego e cuidadosamente alarga o orifício da pequena conta roxa. E logo ela
corre alegremente e repousa ao lado das outras.O rapaz continua, calmo e
distraído, a enfiar conta por conta, repetindo e alterando cores, colocando a
mais brilhante ao lado de uma esmaecida e sem graça, numa sequência que parece
seguir a absurda lógica do 'por acaso'. Enfim, ele termina o colar. Junta as
extremidades do fio, dá um nó e corta as pontas que sobravam, de tal modo que
não se sabe agora onde começa ou termina. Tudo é colar...
Ele coloca sua obra sobre o
feltro e observa. Sorri satisfeito. Eu reconheço que ficou bonito, mas não dou
o braço a torcer; teria feito diferente. Provavelmente escolheria
cuidadosamente uma sequência de cores e a repetiria harmoniosamente até o fim
do colar. Ou, quem sabe, faria um colar só de contas azuis, minha cor
preferida. Preto e roxo jamais! Nem amarelo, que acho sem graça e sem vida. Levanto-me
e vou embora, combinando cores e contas em minha imaginação.
Meses depois, participo de
um retiro espiritual em Itaici, São Paulo, orientado pelo padre jesuíta
Adroaldo Palaoro. Ele começa fazendo no quadro um desenho e colocando a
seguinte alternativa: "Tudo começa e termina em Deus. Ele dá sentido a
todas as coisas". Na curva do desenho mergulho numa viagem mágica... A
cena da praça atravessa minha memória como as contas de um colar. Neste colar colorido
vejo minha vida sendo desfiada conta a conta, dia a dia. Cada dia, uma conta.
Sem nenhuma lógica aparente. Um pequeno caos cotidiano que frequentemente foge
ao meu controle, escapa aos meus planos. Há trechos do colar que são uma
sucessão de cores que se repetem. Dias de um azul clarinho, um verde brilhante,
um vermelho escandaloso, um azul forte e vigoroso iluminando todo o colar. E
logo a seguir... volta a rotina das cores que se repetem. Olhando o colar da
minha vida compreendo que a rotina é uma ilha cercada pelo imprevisível por
todos os lados.
Mas em tudo há uma certeza:
o fio... O fio atravessa e sustenta, indiscriminadamente, todas as contas do
colar. Para o fio, todas as contas contam... a mais bela e brilhante e também a
mais sem graça, aquela que eu rejeitaria e jogaria no lixo. O Amor de Deus é o
fio que sustenta as contas da minha vida. O vazio de cada conta é preenchido
pelo fio. Quanto mais grosso o fio, mais forte o colar. O curioso é que o fio
mais fino é mais prático de usar, passa mais fácil pelas contas. O fio grosso
às vezes emperra, esbarra nos obstáculos que a conta tem. Às vezes é preciso
alargar os espaços da vida para caber o Amor de Deus. Amor...
Percebo também que as contas
ocultam o fio. Ele as sustenta, mas quase não aparece. Mas alguma coisa me diz
que ele está lá. Essa coisa de não ver e, ainda assim, crer, tem um nome: Fé. Amor
e Fé... O resultado final é um colar colorido que, tenho certeza, vou oferecer
ao Pai, de repente, quando enfim encontrá-Lo face a face. Quando, ao unir as
pontas não haja mais começo nem fim, apenas colar, apenas vida e vida em
plenitude. Esse sentimento chama-se Esperança.
Amor, Fé e Esperança, nos
dramas e nas tramas do cotidiano, o desafio é tomar, todos os dias, o fio do
Amor de Deus e deixar que ele atravesse as contas da minha vida, todas elas,
sem escolher cores e formas, nem tamanho, nem comprimento. Na liberdade da Fé,
na serenidade da Esperança.
Vi, naquela praça, e
compreendi na oração que, no Amor de Deus, até o 'por acaso' vira 'por querer'...
de Eduardo Machado - Itaici,
08/07/98 - Exercícios Espirituais - Todas as contas contam...
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