terça-feira, 7 de abril de 2009

Uma Lição de Viver


(Visita ao AIACOM e SOPÃO – Obras sociais agostinianas – RJ)

Sexta-feira. 13 de agosto de 1999.
Chegada ao AIACOM* – Armazém de Idéias e Ações Comunitárias, no bairro Engenho Novo, Paróquia Nossa Senhora da Consolação e Correia. Na equipe, Douglas, Kátia Amaral, Cacau, Rosana e eu (Sandra).
No começo, dúvidas e medos frente aos relatos recebidos (a “preparação do terreno” onde iríamos pisar). Primeira surpresa: rostos felizes na interação educador/educando, a despeito de um contexto social e familiar de violência, drogas, morte (já banalizada...), descrença... Atrás daquelas feições, o retrato da dor. Predominância da cor negra. Surpresa e encantamento ao vermos a magnífica atuação de uma equipe de, mais ou menos, 35 pessoas junto a meninos e meninas de 4 a 17 anos. Lição de resgate da cidadania.
(E eu me senti tão pequena, insignificante, inútil mesmo... Primeiras inquietações de dentro: estariam eles fazendo mais? e nós, aqui, menos? Realidades distintas. Projetos distintos. Objetivos específicos. Meta comum, única: “educação como um processo de busca constante que pessoas e grupos fazem para construir sua própria identidade e história”, “formação plena do indivíduo”.)
Em meio aos relatos e vivenciando aquelas “oficinas”, uma lição e outra... “Não basta ser educador, um bom educador, é preciso interagir a todo instante com o aluno”. Em cada trabalho visitado, a emoção de ver crianças e adolescentes desenvolvendo suas potencialidades humanas nas chamadas “oficinas psicopedagógicas”.
Hora de pôr o pé na estrada, conhecer o morro, as “comunidades”, ver o retrato de uma vida um tanto quanto cruel. A lição do morro. Barracos empilhados, pendurados em ladeiras íngremes, como a mostrar àquela gente sofrida que a vida é isso. O morro é assim.Cheio de códigos, simbologias. E lá estava o inocente latão de lixo a disfarçar uma calma aparente.Sinal de perigo. Não subir nem descer (a noite anterior havia sido quente. Invasão, tiroteio, granadas...)
A cruz em cada morro. Longe de evocar religiosidade, mas, ao mesmo tempo, simbolizando um lugar sagrado, “altar de sacrifícios”, local de extermínio das “personas non gratas” ao meio, traidores da lei que impera no morro. (...aos filhos deste o solo,ó mãe gentil, pátria amada, Brasil. Ainda que este solo seja a sete palmos). Religiosidade? Vi, sim. Naquela igrejinha do Morro São João. Pequena, corroída pelo tempo, tempo de agora.
Ao lado da igrejinha, emendada à parede lateral, um barraco de dois cômodos. Subir o morro. Entrar no morro é como entrar do outro lado da vida. Lição de mãe. No barraco mal iluminado, sem janelas, a miséria imperava. Doía-me a alma e o coração parecia sangrar. (E eu, menor ainda.). A “mãe” de quatro anos olhava-nos curiosa. Ao redor, penumbra, amontoado de pedaços do que um dia foram móveis, sujeira, umidade, mofo. O guarda-roupa parecia lutar para manter-se de pé, entulhado de panos, roupas. No chão, pedaços velhos de tapetes. Sobre uma larga e feia cama, os três “filhos” daquela mãe de quatro anos: filhos de três anos, dois anos e um bebê de aproximadamente um ano. Não vi poesia.Ou talvez aquela fosse a maior poesia viva diante de meus olhos! Do quarto do fundo vinha um barulho intermitente de água pingando. Uma luz fraca lá no fundo. Doeu muito. Foi difícil permanecer ali.
Conhecer o AIACOM foi lição de luz, solidariedade, de fé na construção de um novo país. Uma experiência, como disse Pe. Paulo Gabriel, “que nos ajuda a crer que vale a pena sonhar”. Vimos um trabalho articulado e participativo, com setores interligados, metas estabelecidas e pautadas no binômio “inteligência e coração”. Ficou a constatação, de educador a educador, de haver uma só fala. Plagiando Santo Agostinho, acho que posso afirmar: vimos uma só alma, um só coração.
* AIACOM: projeto alternativo sócio-educativo que busca contribuir para a formação integral das crianças e adolescentes em situação de risco social, para que possam desenvolver, dentro de suas potencialidades humanas, sua consciência crítica e seu espírito solidário, tornando-se agentes transformadores da realidade, envolvendo neste processo a família e a comunidade.


Sábado, 14 de agosto de 1999.
Visita ao Sopão, no bairro Marechal Hermes.
Mais uma vez, crer no amor maior. A experiência agora é como ver ao vivo e a cores alguns ensinamentos de Santo Agostinho. “A medida do amor é amar sem medida”. Ou ainda: “Põe amor em tudo o que fazes e as coisas terão sentido. Retira delas o amor e tornar-se-ão vazias.”
Novo e dolorido impacto. Agora mais forte. Retrato da fome. A degradação do homem. O fundo do poço. À nossa frente perfilavam figuras tristes, “espectros” do que algum dia já foram chamados homens. Perderam tudo, o sonho, a casa, a família, o trabalho, a dignidade. Restou-lhes a fome. E naquele momento o que mais importava era a tigela com a sopa para matar a fome, pois o resto parecia estar morto. Visão grotesca. Aquelas cenas ardiam e feriam os olhos e o coração. No ar, o mau cheiro impregnando as narinas. Alguns cães se misturavam àquela gente também na expectativa de sobrar-lhes algum bocado. Seres humanos em grupos, espalhados pelo pátio, alguns na capela cumprindo um ritual de evangelização no aguardo de sua vez de devorar a sopa, outros se lavando... No pequeno refeitório, talvez a única refeição daquele dia... Quebrando aquela deprimente cena, um jardim. Ali, as flores e plantas teimando em colocar um pouco de cor e beleza.
(Inútil chorar. A dor não passa. “Senhor, que queres que eu faça?” Esboçam-se mais inquietações internas. Mais indagações surgindo em mim, tão pequena, tão menina, diante da grandiosidade daquele trabalho de entrega, de paixão, de voluntariado, de amor ao outro... “Que é o homem para que dele te lembres, Senhor?” Até que ponto pode descer o homem? Começo a me dar conta de que é possível saber por quem os sinos dobram.).
E nós? O que fazer com tudo isso que vimos, ouvimos, vivemos...? Indiretamente, nós estamos lá, nessas duas igualmente importantes e fascinantes obras sociais agostinianas. Dentro de mim fica martelando o pensamento de que não estamos aqui por acaso. Temos também uma razão de ser, uma missão a cumprir. Santo Agostinho já nos ensina que o amor é a grande diferença. “Todo amor tem sua própria força e não há amor inoperante em alma alguma. Arrasta sem remédio. Queres saber qual é o amor de tua alma? Veja aonde te leva.”

"Um homem se humilha, se castram seus sonhos. Seu sonho é sua vida e a vida é o trabalho. E sem o seu trabalho um homem não tem honra. E sem a sua honra, se morre, se mata. Não dá pra ser feliz.”

Sandra Medina Costa
Rio de Janeiro, 13 e 14 de agosto de 1999.


AIACOM (Armazém de Idéias e Ações Comunitárias)
Rua Barão do Bom Retiro, 920 - Engenho Novo –
CEP: 20.715-000 – RIO DE JANEIRO – RJ
Tel.: (21) 2581-9918 / 2261-6709
OBRA SOCIAL SANTO TOMÁS DE VILANOVA (Sopa dos Pobres)
Rua General Savaget, 15 A - Marechal Hermes –
CEP: 21.610-290 RIO DE JANEIRO - RJ
Tel.: (21) 2450-2187




POEMA DA MENINA QUE VIU
O RETRATO DA FOME E DA VIOLÊNCIA

I
Eu vi o menino. Eu vi a alegria.
Eu vi a cor. Eu vi a dor.
Eu vi o morro.
Eu vi a cruz do morro.
Eu vi a lata de lixo.
Eu vi a igrejinha no morro.
Eu vi o barracão.
Eu vi o chão. Eu vi a “mãe”.

Eu vi a luz,
a indignação,
a solidariedade ao irmão,
a flor teimando em brotar do árido chão.


II
Eu vi o homem.
Eu vi o irmão.
Eu vi o cão.
Eu vi a fome.
Eu vi a dor.

O homem não estava só.
A fome não estava só.
A dor não estava só.

Eu vi a luz,
a indignação,
a solidariedade ao irmão,
a flor teimando em brotar do árido chão.


Sandra Medina Costa
Visita ao AIACOM e Sopão
Rio de Janeiro, 13 e 14 de agosto de 1999.


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